Antes de chegar a modernice do Halloween, criada em Portugal pelo comércio, havia a tradição, em certas zonas do país, de pedir pão-por-Deus.
Soeiro Pereira Gomes, no livro Esteiros, com a dedicatória Para os filhos dos homens que nunca foram meninos, descreve-nos magnificamente esta tradição e a grande necessidade que levava as crianças a pedir pelas portas, como ele diz, portas de batentes e campainhas. Que nas outras o pão era escasso e os moradores estavam fora a ganhá-lo.
1 de Novembro. Dia de Todos os Santos e dia de pão-por--Deus. As crianças espalham-se pela rua e batem às portas.
- Pão…por Deus…
Nas arcas há nozes e castanhas e figos secos… A tradição manda que não se encham bornais com «tenha paciência». Os pobres tiram o pão da boca para os filhos dos pobres. E os ricos sacodem as migalhas, em nome de Deus.
Dia de Todos os Santos, dia de todos os pobres.
(…)
Mas não foi pelas estrelas que ele passou a noite em claro. É que, mal despontasse a aurora, iria mendigar pão-por-Deus. Pão que seria mão-cheia de nozes, peras e castanhas… A ansiedade afugentara-lhe o sono, tornara mais duro o chão da cabana. A seu lado o saquitel das dádivas atormentava-o, pois, sob o afago da mão, Sagui calculara-lhe o tamanho e achara-o pequeno. Com a camisa não contava, porque estava rota, e os bolsos eram pouco fundos…(…)
Às oito horas, partiram. Magrizelas, cobertas de trapos, as outras crianças saíam aos pares das casas e formavam legião nas ruas. Na serenidade baça da manhã, as vozes langorosas tinham entonações de cântico sagrado.
- Pão … por Deus. – Ao longe como um eco: - por Deus.
Lentamente, as vozes fundiam-se numa só voz angustiosa, que abafava as últimas palavras.
- O Pão…
O Sagui desesperava-se.
- Diz isso de outra maneira, Maquineta.
Sabia lá. A voz já não era a sua. Era a voz de todas as crianças que, àquela hora, andavam de porta em porta, nas ruas de todas as vilas e aldeias.
- Tem alguma coisa que saber, pá? – recriminavam os companheiros. – É pedir como os pobres.
- Eu cá nunca pedi… - lamentava-se Gaitinhas, que também não se ajeitava.
Ah! que se a mãe soubesse que ele andava ali!... Ele, que por vontade do pai devia ser doutor, a bater às portas como um mendigo.
Junto do jardim do Sr. Castro, o Coca, que se julgava a pedir nos outros dias do ano, lamuriou:
- Uma esmolinha, menino…
- A mamã diz que só dá ao sábado.
- Vês o que arranjaste, meu palerma? – segredou Malesso. E corrigiu, afinando a voz: - Pão, por Deus. Hoje toda a gente dá.
Atrás do portão, Gaitinhas, corado de vergonha, espreitava o jardim em que não mais brincaria, e uma sombra de tristeza embaciava-lhe os olhos. Entretanto, Arturinho reapareceu no cimo da escada.
- Eh! Agarrem lá isto. – E, risonho, foi atirando, uma a uma, algumas nozes que os garotos apanharam do chão.
- Quantas? – perguntou o Coca, que não se curvara por ser coxo.
- Sete.
- Ora gaita! Se hoje fosse sábado…
Então Maquineta voltou atrás. – Eh, menino! Esta noz é chocha. – E atirou uma pedra ao Arturinho que ficou a chorar.
De rua em rua, a ladainha continuou às portas de batentes e campainhas. Que nas outras o pão era escasso e os moradores estavam fora a ganhá-lo. Assediado também, o Sr. Castro enxotou-os do passeio:
- Vão trabalhar, que já têm bom corpo.
Os moços ficaram quietos e mudos a vê-lo afastar-se. Trabalhar… era bom de dizer. Há mais de um mês que os telhais tinham parado e, de trabalho, os moços só encontravam promessas. Se o amigo Gineto ali estivesse – pensou Gaitinhas -, era capaz de insultar o Sr. Castro, mesmo nas bochechas. Mas Gineto não quisera pedir pão-por-Deus, e andava agora a roubar a uns e a outros, e a correr todos à pedrada.
- Gineto, não me tires os figos que são para a minha avó – suplicou Pirica.
- A tua avó é velha, já comeu muitos figos.
- Gineto…
- Larga, se não levas um estalo.
Quando os rapazes andavam em magote, escondia-se numa esquina e atirava-lhes pedras. Depois, dispersos, abordava um por um.
- Reparte comigo depressa. E caluda, ouviste?...
Foi numa ocasião destas que Gaitinhas o encontrou.
- Deixa o rapaz.
- Põe-te a mexer, Gaitinhas…
- Se o deixares, dou-te estas nozes e figos.
Gineto parou a fitá-lo, embasbacado. Ainda nenhum repartira com ele, sem pesar. E pela segunda vez Gaitinhas lhe desarmava a maldade. Foi na Feira, quando o avisou de que o pai lhe queria bater, e agora, ali…
- Obrigado – murmurou o outro garoto.
Saíram os dois a ladeira do Mirante e foram sentar-se no morro.
- Toma figos – ofereceu Gaitinhas.
- Eu tenho.
- Então para que roubavas?
- Sei lá
Gineto não quis confessar que não pedia porque o escorraçavam das portas, chamando-lhe ladrão e vadio. Nunca mais esqueceria a tareia que, há um ano, apanhara das mãos do Sr. Castro. Entrara confiante no jardim: - Pão, por Deus…
- Toma lá, rapaz…
E as pancadas deixaram-lhe marcas no corpo, apenas porque apedrejara o caseiro quando fora assaltar a Quinta Alta.
Talvez por isso, por esse castigo cobarde e tardio, é que ele andava assim a escorraçar os garotos com mais sorte.
- Gaitinhas: és meu amigo?
- Sou, pois.
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